Peregrinação da Rosa de Schumann e „Gleichschaltung“ no Brasil. Revista BRASIL-EUROPA 127/22.  Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 


Pela passagem dos 200 anos de nascimento do compositor Robert Schumann, o Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS), que comemora em 2010 os seus 25 anos de fundação alemã, realizou um ciclo de estudos na Saxônia e na Renânia do Norte, regiões em que o compositor viveu e atuou.


Dentre os vários complexos temáticos considerados, o ISMPS julgou ser significativo lembrar da execução de uma obra de Schumann em São Paulo, à época da Segunda Guerra: „A Peregrinação da Rosa“ (Der Rose Pilgerfahrt, op. 112), o último oratório do compositor.


Atualidade de „A Peregrinação da Rosa“


Der Rose Pilgerfahrt está sendo na atualidade redescoberta e revalorizada, no âmbito das apresentações da obra de Schumann por motivo das suas comemorações.


Essas reconsiderações de uma obra pouco executada despertam frequentemente uma certa surprêsa e mesmo estranheza por parte de executantes, críticos e ouvintes. Sobretudo o texto surge como de validade estética discutível, até mesmo kitsch, e pergunta-se a razão do compositor tê-lo escolhido. O conteúdo transmitido pelo texto e a própria música não são sempre fáceis de serem avaliados no seu significado, na sua posição e na sua relevância no todo da obra schumanniana.


A execução da obra no Brasil, no contexto de comunidade alemã no Estrangeiro nos anos da Guerra chama a atenção para aspectos da recepção, da reinterpretação e da instrumentalização de Schumann pela ideologia dos anos 30 e 40, uma questão que também ocupa musicólogos alemães da atualidade.


Questões relativas ao sentido de „A Peregrinação da Rosa“ no Brasil


Qual seria a razão pela qual foi escolhida Der Rose Pilgerfahrt para ser executada em São Paulo, em períódo marcado pela Gleichschaltung, pela alinhamento de todas as correntes do pensamento e das arte segundo a linha oficial representada pelo consulado geral alemão?


Qual o significado que foi visto nessa obra? Houve nela algum conteúdo que viesse de encontro à concepção do regime? Foi ela usada como subterfúgio, como peça inócua, ou pelo menos aparentemente inócua por alemães que queriam ou precisavam atuar culturalmente apesar das limitações impostas pelas diretrizes político-culturais? Possuía uma mensagem oculta ou ambivalente, entendida apenas por iniciados?



Local de reflexões: parque do palácio de Machern

Para a reflexão dessas questões, escolheu-se o palácio de Machern, ou melhor, o seu parque, situado próximo a Leipzig. Embora a história da execução da obra estar ligada a Düsseldorf, tanto Schumann como o autor do texto provinham da Saxônia.

Os jardins do palácio de Machern pertencem à série de parques da Alemanha que refletem o fascínio exercido pelo paisagismo inglês a partir de fins do século XVIII. Aristocratas de interesses filosófico-estéticos, inspirando-se em tendências britânicas, passaram a procurar uma maior proximidade à natureza na configuração dos jardins de suas propriedades, superando princípios formais rígidos na disposição de canteiros e caminhos. O agrupamento de árvores, arbustos e a disposição de lagos deveriam sugerir conjuntos naturais, desenvolvidos espontaneamente. Muitos parques barrocos foram assim metamorfoseados, transformando-se ou amenizando-se a artificialidade de formas ornamentais de inspiração francesa. Esse foi o caso dos jardins do palácio de Machern.


O jardim oferece uma variedade vegetal considerável, com espécimes raras de árvores e que demonstram os esforços de enriquecimento botânico do patrimônio. Entre elas, salienta-se uma rara árvore-campanário azul da China. Um grande lago de 5,7 hectares domina o complexo, habitado por cisnes.


A intenção estética da reforma paisagística manifesta-se claramente na criação de recantos para recolhimento e reflexão, assim como de espaços intimistas através de jardins fechados.


Pequenos monumentos acham-se distribuídos pelo parque, indicando o intuito de criação de focos de observação e de diferentes ângulos de perspectiva. A função desses elementos construtivos, porém, não é apenas formal. Ela é sobretudo poética, pois desperta associações e sugere evocações, Assim, o parque de Machern apresenta uma pirâmide-mausoléu maçonico, com urnas, de 1792, um templo à deusa Higéia, um castelo medieval edificado como ruína artificial e outros marcos sugestivos e de múltiplas conotações. Com esses e outros marcos, o conjunto assume um cunho altamente romântico, e aquele que o percorre é levado a meditar sobre o sentido poético de seus recantos, dirigindo. ainda que de modo vago, nostalgicamente o seu pensamento a épocas remotas e a períodos de seu próprio passado, à sua infância e juventude.


Nessa metamorfose do parque, o próprio palácio foi integrado no contexto romântico, adquirindo um novo significado. A construção remonta, nas suas origens, ao século XVI. Uma inscrição num dos portais traz a data de 1566. Dessa construção, restaram salas com tetos de estruturas cruzadas e uma torre no pátio interno. Destruído durante a Guerra dos 30 Anos, o edifício foi posteriormente reconstruído sob novas tendências estilísticas do Barroco, a partir de 1733. Era, na época, ainda cercado por um fosso de água.

Carl Heinrich August, Conde de Lindenau (1755-1842)

O responsável pela criação do parque-jardim do palácio de Machern foi o Conde Carl Heinrich August von Lindenau, tenente-general, desde 1786 mestre das cavalariças do rei da Prússia. Seu pai foi Heinrich Gottlieb, Conde de Lindenau (1723-1789), conselheiro e chefe de cavalariças, com propriedades feudais em Machern e outras localidades. A sua mãe era Charlotte Auguste von Seydewitz (1729-1764). O Conde Carl Heinrich August von Lindenau casou-se, em 1780, com Christiane Henriette von Arnim (1762-1833).

No seu cargo como responsável pelas cavalariças reais, o Conde de Lindenau teve a possibilidade de realizar várias viagens ao Exterior, de onde obteve inspirações para o parque-jardim. Foi uma personalidade esclarecida, interessada em literatura, com formação obtida na Universidade de Leipzig, tendo chegado a conhecer e manter relações de amizade com W. v. Goethe (1749-1832).

„A Peregrinação da Rosa“ de Heinrich Moritz Horn (1814-1874)

Pelo fato de ter sido posto em música por Schumann, o texto de Henrich Moritz Horn, escrito em Leipzig, em 1852, não caiu em esquecimento, como grande parte da obra desse escritor.

Nascido em Chemnitz, na Saxônia, Heinrich Moritz Horn foi pensador de sólida formação e diversificada erudição, amante das artes, em particular do teatro. Estudou inicialmente Direito, - como Schumann - , em Leipzig, assistindo, porém, com maior interesse, a aulas sobre Estética e História. Embora tendo seguido a carreira de advogado, encontrou a sua realização pessoal sobretudo na cultura e nas artes. Assim, fundou uma sociedade dramática, sentindo-se assim motivado a traduzir obras teatrais francesas e realizar próprias criações.

A sua Der Rose Pilgerfahrt, embora considerada como poesia épica, indica um fascínio de meados do século por uma lírica marcada por assuntos florais, por contos de fadas, por temas de delicadeza e ternura de sentimentos.

Assim, logo após tê-lo escrito, Heinrich M. Horn escreveu, em Leipzig, um outro poema do gênero, denominado de „A lília do lago“ (1853). A sua tendência idílica manifestou-se em „A avó da aldeia“ (Die Dorfgroßmutter, 1856). Essa fase marcada pela lírica de evocações líricas e sentimentais deu lugar a outras tendências, em parte mais realistas, manifestadas em Magdala (1855) e nos novos poemas (Neue Dichtungen), publicados em Praga (1858). A sua tendência à interiorização romântica também refletiu-se na sua obra em prosa, nos contos „No castelo e no vale“ (Auf dem Schliß und im Thal, Praga 1858), „Os demônios“ (Die Dämonen, Praga 1862), e em „O acorde quebrado“ (Der zerrissene Dreiklang, Leipzig 1867).


Um Oratório de significado poético

Schumann não apenas pôs em música o texto de Horn, mas participou na sua criação, dando indicações precisas ao autor.

A „Peregrinação da Rosa“, inicialmente para solistas, coro e piano, foi executada pela primeira vez a 6 de julho de 1851 no salão do apartamento particular da família Schumann, em Düsseldorf, com a participação de 20 cantores, acompanhados ao piano por Clara Schumann. Com a execução dessa obra, Schumann inaugurou a sua casa na cidade cuja vida dirigia musicalmente já há quase um ano.

Em ambiente íntimo, presenciaram a execução ca. de 60 pessoas. A realização desse oratório em atmosfera reservada e marcada por introspecção certamente representou uma experiência poético-emocional profunda para os ouvintes. Ao impacto sonoro causado por coro a 8 partes e pelo quinteto de vozes solistas no pequeno espaço somava-se à impressão causada pela textura refinadamente elaborada da composição e pelas melodias facilmente assimiláveis, entoadas por solistas ou por participantes do coro, convidativas ao cantar em conjunto.

Como oratório, a obra é estruturada segundo seções para solos, coros e vozes solistas com coro. As peças exclusivamente corais apresentam por vezes várias seções. Nas peças iniciais e corais, são cantadas só por vozes femininas. As partes solísticas não apresentam recitativos e árias, mas são tratadas como canções acompanhadas ao piano. O papel do narrador é assumido por diferentes solistas.

Essa peça recessita ser considerada sob o pano de fundo de concepções sobre o oratório no círculo dos „aliados de David“, tal como sugerido em textos sobre música sacra na revista criada e publicada por Schumann, a Neue Musikalische Zeitschrift.

Essas concepções, marcadas pelo espírito romântico de uma admiração pela música sacra católica, em particular pela missa como união por excelência de música e liturgia (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Wechselburg-Hermeneutica.html), salientavam que o Protestantismo apenas tinha a oferecer aqui, à altura, o oratório. Esse, porém, já havia deixado por vezes textos bíblicos, passando a tratar de assuntos profanos, como o demonstra obras de Händel.

Embora não explicitamente considerado, dever-se-ia, no emprêgo de textos profanos, históricos e mitológicos em oratórios, levar em consideração a função alegórica dos mesmos, o que relativaria a crítica de uma secularização do gênero.

No caso do oratório de Schumann, porém, dificilmente pode-se partir de um sentido alegórico do mesmo. As concepções dos „aliados de David“ eram fundamentalmente críticas relativamente ao uso de alegorias. Defendiam antes uma poética caracterizada por um intento de percepção de sentido oculto, para além da realidade sonora, captada pelos sentidos, uma percepção de natureza vaga, determinada musicalmente

A obra de Schumann representa a concretização de concepções estéticas já tratadas no periódico por êle dirigido e por êle próprio e pode ser vista como significativa na históría do oratório. Schumann preconizava uma transformação do gênero através do emprêgo de poesia livre, não de textos bíblicos, e uma forma nascida da própria música. Para êle, o oratório deveria torna-se mais popular, inteligível a todos, habitantes do campo e das cidades, e para isso a música deveria ser simples, pouco artificial, não contrapontística, mas capaz, de pela simplicidade, atuar pelo rítmo e pela melodia. O oratório combina assim elementos de ciclos de canções, da balada coral, do antigo oratório e mesmo da ópera, amalgamando lirismo e drama, de modo novo e singular. A caminho dessa renovação do oratório, Schumann compôs „O Paraíso e o Peri“ (composto na sua maior parte em 1841), „Cenas do Fausto de Goethe“ (entre 1844 e 1853), Manfredo (1848/49), e „O Filho do Rei“ (1851).

Os meios musicais empregados manifestam a sua inserção no universo do Lied alemão de acompanhamento ao piano. Um espírito de canção transpassa a composição, o que confere ao oratório um cunho de simplicidade e proximidade ao popular. Esse elo com o popular, até mesmo com o folclórico e com a natureza é fortalecido pelo coro, quando representa vozes da floresta, caçadores, duetos de molineiros e cenas de casamento. O coro é, porém, também utilizado para manifestar vozes de elfos e de anjos, contribuindo à sugestão de conteúdo supra-real e imaterial. O refinamento da elaboração da textura musical impede, porém que a obra, apesar de todo o seu cunho popular, caia em sentimentalismo vulgar.

A interação do popular e do altamente elaborado, do natural e do supra-natural, a sugestão de conteúdos inigmáticos foi sentida pelos contemporâneos como uma espécie de mistério, uma recuperação de sensações do mundo encantado da infância, a nostalgia de um estado em que o homem procura captar quase que auditivamente segrêdos da realidade.

„A Peregrinação da Rosa“ em São Paulo, em 1939

A obra de Schumann foi executada, ainda que não na sua totalidade, por ocasião do concerto festivo em comemoração aos 55 anos da Sociedade de Canto Alemão „Lyra“ (D.M.G.V. „Lyra“), no dia 11 de novembro de 1939, um sábado, às 20.30 horas.

Participaram, como artistas, Elfriede Lantzius-Beninga, soprano; Hertha Beinhauer, contralto; Albert Klein, baixo; Ella Hahmann, piano; Coro masculino e coro feminino da Lyra. Regentes foram Dr. Fritz Ackermann e Martin Braunwieser.

O programa, na sua primeira parte, foi aberto por peças para canto de autores brasileiros, a modinha Acaso são estes (arr. Mário de Andrade) e Somnambulo, de Frutuoso Viana, interpretadas por Ella Hahmann, acompanhada ao piano por Hertha Beinhauer.

Seguiu-se uma parte para coros masculinos e femininos, com canções populares e peças de autores alemães.

Assim como as peças brasileiras, as composições interpretadas pelo coro foram escolhidas para preparar a audiência à execução de „A Peregrinação da Rosa“. A parte coral incluiu assim temas relativos à terra, a ruínas, ao canto de caça e da floresta, assim como à saudade.

Na segunda parte, apresentaram-se as seguintes partes do oratório de Schumann: Was klingen denn die Hörner (Coro mixto e solo de soprano); Im Wald, gelehnt am Stamme (Solo de alto);  Zwischen grünen Bäumen (Dueto: soprano e alto); Wir tanzen in lieblicher Nacht (Solo de alto e coro feminino); Bist du im Wald gewandelt (Coro masculino); Ei Mühle, liebe Mühle (Dueto para soprano e alto); Danke, Herr, dir dort im Sternenland (Solo de soprano); Schwesterlein! Hörst du nicht (Coro feminino); Wer kommt am Sonntagsmorgen (Solo de baixo); Röslein, Zu deinen Blumen nicht (Coro feminino) e Im Hause des Müllers (Coro mixto).

„A Peregrinação da Rosa“ com acompanhamento orquestral em São Paulo, em 1940

O oratório de Schumann voltou a ser apresentado, agora na sua versão completa, em concerto coral da Sociedade de Canto Masculino Lyra a 11 de abril de 1940. Como expressamente registrado na capa do programa, o evento realizou-se em concordância com o Consulado Geral Alemão, a favor da Deutsche Nothilfe.

A constituição do programa foi semelhante ao do ano anterior. A primeira parte foi também aqui aberta por duas peças brasileiras, obedecendo ao preceito legal de inclusão de música brasileira em concertos. Desta vez, escolheu-se, da coleção editada por Mário de Andrade das Modinhas Imperiais, o Último adeus de amor, interpretado por Herta Beinhauer.

Ao invéis das peças vocais do concerto de 1939, incluiu-se aqui nada menos do que o Concerto em lá menor (op. 54) de Schumann, executado por Margarete von Schütz.

„A Peregrinação da Rosa“, designada como lenda, tomou a segunda parte do programa. Dos solistas, apenas dois foram os mesmos da apresentação de 1939: Elfriede Lantzius-Benigna, soprano, e Herta Beinhauer, contralto. Os demais foram substituídos por Tatiana Braunwieser, contralto, Robert Donat, tenor, Fritz Wenger e Josef Springmann, baixos.

A obra foi executada pelos coros feminino, masculino e mixto da DMGV Lyra, acompanhados pela grande orquestra do Centro Musical de São Paulo, sob a regência de Martin Braunwieser.

Publicação do conteúdo  em português

O programa do concerto incluiu um longo resumo do conteúdo do poema de Moritz Horn, provavelmente traduzido por Tatiana Braunwieser:

„O conteúdo da lenda, com as suas reflexões algo exageradas para o nosso modo de pensar e com certas sensibilidades romanticas, para a qual Roberto Schumann escreveu uma musica quasi popular e de valor eterno, resume-se em breves palavras no seguinte: Após a descrição da bela primavera pelas vozes femininas anuncia-se o dia de São João pelo tenor que nesta obra representa o papel de anunciador e explicador. Segue-se então uma dansa de fadas pelo côro feminino, ouvindo-se em seguida uma flôr, uma rosa, que lamenta em melodia suave a falta da primavera de amôr para as rosas. A princesa das fadas previne-a, pois o amôr em muitos casos traz mais dôres do que alegria. A rosa porém está´disposta a suportar tudo afim de gosar da vida amorosa. A princesa das fadas concorda e a rosa vae ser transformada em menina, devendo ela levar sempre consigo uma rosa. No momento porém quando a flor cair da mão déla, perderá a vida e será conduzida á sua patria natural. Agora a bela menina-rosa desperta-se na terra profana; mal pode compreender de alegria o ambiente da realidade. A menina aproxima-se da primeira casa onde pede abrigo. Não se atende á solicitação, pois a menina não tem nem recomendações nem certificados. Isso a primeira decepção. Caminhando a rosa chega á segunda casa situada perto do cemiterio, propriedade do velho coveiro, ancião com costas curvadas e cabellos brancos de neve. Acaba êle de cavar o tumulo para a gentil filhinha do molineiro. Aproxima-se o feretro com as suas canções funebres (Côro mixto). Tendo-se afastado o feretro o sepulteiro pede á rosa de permanecer na casa dêle pelo menos naquela noite, aceitando a pequena tal proposta com novo animo. A oração da rosa nesse trecho musical é extremamente sentimental. Adormecendo ela ouve o côro das fadas. - Na segunda parte da obra o tenor descreve o acordar da peregrina a qual pretende continuar na sua viagem. O velho coveiro porém pede que a rosa ocupe o lugar da filha morta do molineiro o que a rosa promete fazer com grande satisfação. Conduzida pelo ancião a menina-rosa entra no moinho do vale. O molineiro e a mulher dêle não podem confiar aos seus olhos, pois a rosa assemelha à filha falecida tanto como um ovo ao outro. Assim a rosa enche o lugar na casa e nos corações que ocupava a filha falecida. Em breve a nova filhinha ganha toda a simpathia dos pais e da aldeia inteira. Em toda a redondeza não ha ninguem que não goste dela e que não respeite a menina. O filho do couteiro, encostado no velho carvalho, tece os seus sonhos. Êle ama a filhinha do molineiro mais do que outro homem qualquer. Os dois encontram-se na primavera de amor. Na manhã do domingo o filho do monteiro-mór, festivamente trajado, vem ao moinho para pedir a mão da bela rosa e quando o molineiro pergunta qual fosse a voz do coração da menina, ela esconde o rosto envergonhado no peito do pai. Tambem o moinho veste-se festivamente. Soam as cornetas na alvorada, festeja-se o enlace. Soam tambem os sinos da igreja. O sacerdote bença as duas almas e na casa do molineiro cantam os violinos e dançam os jovens com as moças. Decorrido um ano, a linda rosa beija um botão de rosa erguendo os olhos com profunda gratidão ao ceu. Agora ela entrega com mãos tremulas o penhor da sua vida, a rosa, á creança. Senti a felicidade humana, após isso não ha felicidade maior. Adeus! Finda a obra ouvem-se as vozes dos anjos (côro feminino) saudando a rosa que volta á sua patria primitiva. Suavemente, como do outro mundo, termina a lenda“.

Paradoxos do Romantismo no período da Guerra e sua instrumentalização

O observador atual surpreende-se em constatar o teor altamente romântico das programações da sociedade alemã de São Paulo em época crucial da deflagração e dos primeiros anos da Guerra. Surpreende-se, sobretudo, em constatar o significado dado a obras de Schumann, de grandes dimensões, e que exigiram considerável empenho, união de forças e meios financeiros.

Essas execuções não poderiam ter sido realizadas sem o apoio de grande número de firmas alemãs de São Paulo, entre outras Sönksen, Prata Wolff, Theodor Wille como agente geral da Hamburg-Südamerikanische Dampfschifffahrts-Gesellschaft e da Cia. Internacional de Seguros, da fábrica de produtos alimentícios Vigor, do Banco Allemão Transatlântico/Deutsche Überseeische Bank, da Casa Allemã (Schädlich, Obert & Cia.), da casa Lohner, representante das Siemens-Reiniger-Werke A.-G. de Berlim, de Raimann & Cia, da Sociedade Schmuziger, do Dispensário Homöopathico de São Paulo, da Bromberg & Cia. (locomotivas e tratores), da Rieckmann & Cia (sal Diamante e formicida Tatú), da firma Renner, de E. Oldendorf, da Deutsche Hirsch-Apotheke, de Guilherme Geisselmann & Irmão; da firma Orion, do Cafe Palmeiras, e do loteamento da Villa Sophia (August Sönksen).

Tem-se procurado analisar e explicar, na pesquisa musicológica alemã da atualidade, a instrumentalização de Schumann durante o período nacionalsocialista. Foi visto não apenas como um dos maiores compositores alemães, mas sim também com um compositor essencialmente alemão segundo critérios da ideologia „de essência nacional“ do nazismo. Essa interpretação do compositor e dos seus pensamentos representa uma projeção anacrônica no passado e descontextualiza o compositor de sua época.

No caso do papel desempenhado por Schumann na imigração alemã no Brasil, as análises devem ser ainda mais diferenciadas. Situações ambivalentes necessitam ser consideradas. Jamais se pode esquecer o que representou culturalmente o alinhamento dos impulsos e das iniciativas segundo os preceitos ideológicos oficiais, representados pelos consulados. Nessa política da Gleichschaltung, os consulados já não exerciam apenas atividades subsidiárias de apoio às diversas associações e iniciativas, guiados por princípios qualitativos, mas sim passaram a exercer influência direta e a exigir alinhamento, ainda que de forma nem sempre explícitas.

Nessas circunstâncias, alemães residentes, e portanto dependentes de serviços consulares e submetidos ao contrôle social da comunidade, ou correspondiam por convicção política às diretrizes ou sentiam-se obrigados a procurar caminhos ambivalentes.

Schumann possibilitava aqui esse procedimento de duplo sentido, uma vez que correspondia ao ideário oficial e, ao mesmo tempo, possibilitava outras interpretações.

Sobretudo a escolha de „A Peregrinação da Rosa“ para uma das maiores realizações musicais da comunidade alemã no Brasil do período da Guerra testemunha esse jôgo de ambivalências. 

A obra vinha de encontro às idéias nacionalsocialistas não apenas pelo fato ser de Schumann, compositor visto como „essencialmente alemão“ e pelo seu cunho popular, na tradição da canção alemão, facilmente assimilável pelo „homem do campo e das cidades“.

O conteúdo do texto culmina no fato de ter a Rosa alcançado a plenitude de sua felicidade, da sua realização humana na maternidade, podendo morrer, ou melhor, retornar à sua esfera do além. Com a experiência do tornar-se mãe, que reúne sofrimento e amor, o ser espiritual encontrou a chave dos céus. A morte assim experimentada, doce e amarga ao mesmo tempo, surge como redenção e início de nova vida. O papel da mulher era, amando e sofrendo, o de ser mãe.

A lição moral do texto correspondia, assim, ao culto à maternidade oficialmente fomentado, por motivos raciais, na comunidade de alemães e seus descendentes.

„A Peregrinação da Rosa“ e as concepções dos „aliados de David“

O texto de „A Peregrinação da Rosa“ oferece, porém, outras possibilidades de interpretação, menos superficiais, mais condizentes com as próprias concepções poeticas de Schumann.

Assim, os músicos conhecedores dos escritos de Schumann, compreendiam o significado dessa obra no sentido da concepção dos „aliados de David“ (Davidbündler), fundamental para o pensamento do compositor e de seu círculo. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Grimma-Theodor-Uhlig.html)

Essa concepção manifesta-se sobretudo na primeira decepção vivenciada pela Rosa no mundo, quando foi-lhe negado abrigo pelo fato de não possuir documentos. Esse episódio indica a posição crítica dos „aliados de David“ contra tudo o que representa estreiteza de sentimentos devido a um apego a normas e regras, ou seja, ao Filisteísmo. Os músicos teuto-paulistanos progressistas viam aqui uma figuração que se adaptava à crítica ao convencionalismo de representados da tradição musical de conservatórios.

A imagem da rosa na tradição esotérica e teosófica de alemães

Entretanto, a narrativa dava margens a outro tipo de interpretações por parte de alemães de tendências esotéricas, teosóficas e antroposóficas, independentemente de sua orientação política.

O símbolo da rosa não era apenas usual entre rosacruzes e outras seguidores de correntes de cunho gnóstico, onde em geral a rosa simbolizava a alma e a quinta essência, florescente com a harmonia dos quatro elementos e alcançável através do amor.

A rosa correspondia também à antiga cultura simbólica tanto do Catolicismo como também do Protestantismo. A rosa de Lutero, juntamente com a cruz, fazia parte da cultura da linguagem visual reformada, sobretudo o da rosa branca, sinal da alegria, da consolação e da paz proporcionadas pela fé.


Problemas éticos do jôgo de ambivalências forçado pela Gleichschaltung

O alinhamento levou assim a uma situação cultural marcada por ambivalências e múltiplos sentidos.


Uma obra, como „A Peregrinação da Rosa“, possibilitava ser entendida de diferentes modos, satisfazendo diferentes expectativas e exercendo diferentes funções.


Esse jôgo de ambivalências representou uma possibilidade - em certos casos a única - para a atuação profissional e a realização artística daqueles alemães não vinculados ao partido. Foi uma solução forçada, e que trouxe consigo, ainda que de forma encoberta, problemas de consciência derivados da dubiosidade, da falta de integridade e sinceridade no convívio social, ou seja, problemas de ética.


„A Peregrinação da Rosa“ nos anos 40 do Brasil demonstra, assim, os problemas éticos de alinhamentos conduzidos por órgãos oficiais e suas representações no Exterior.


Ela deve servir de lição para o presente, aguçando a sensibilidade para eventuais indícios de caminhos que podem levar a situações similares à da Gleichschaltung.


Esses indícios se revelam quando órgãos e consulados não apenas apoiam neutralmente iniciativas segundo critérios exclusivamente qualitativos e de justiça, de forma subsidiária, mas quando passam a apoiar e integrar nas suas rêdes determinados grupos que se vêem assim alçados a situações de poder.


Não há apenas instrumentalização da cultura por parte de orgãos e consulados, mas também a de órgãos por grupos que agem em nome da cultura.



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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A.(ed.)."A Peregrinação da Rosa de Robert Schumann no Brasil nos anos da Segunda Guerra. Problemas ético-culturais em situações de alinhamentos sob a ação de representações diplomáticas: lembrando a Gleichschaltung". Revista Brasil-Europa 127/22 (2010:5). www.revista.brasil-europa.eu/127/Machern-Pilgerfahrt-der-Rose.html



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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 127/22 (2010:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2655





A Peregrinação da Rosa de Robert Schumann no Brasil nos anos da Segunda Guerra
Problemas ético-culturais em situações de alinhamentos sob ação de representações diplomáticas:
lembrando a
Gleichschaltung


No bicentenário de Robert Schumann. Ciclo de estudos Saxônia-Brasil em cidades entre Zwickau e Leipzig: Machern
Pelos 25 anos do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes, ISMPS e.V.)

 
















  1. Fotos A.A.Bispo 2010 © Arquivo A.B.E.

 

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