Estética e Direitos Humanos: Singapura. Revista BRASIL-EUROPA 127/5. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 


Os trabalhos desenvolvidos em Singapura pela A.B.E. por motivo da passagem dos 500 anos da conquista de Goa e Málaca pelos portugueses foram marcados por uma especial atenção a questões de linguagem visual.


Essa focalização corresponde ao significado dado a análises imagológicas nos estudos de processos culturais e de transformações de identidades da A.B.E. Sobretudo em situações marcadas por imigrações, colonização e interrelações culturais como é o caso de Singapura, o estudo da função de ordenações imagológicas em processos de mudança cultural e de questões de significados e resignificações assume particular relevância.


Nos trabalhos desenvolvidos em Singapura, essa atenção dada à linguagem visual foi marcada por um especial interesse dedicado a questões das relações entre Direitos Humanos e Estudos Culturais.



Debate sobre o Realismo na arte asiática


Ponto de partida das reflexões foi a atualidade do debate sobre o Realismo na arte asiática, cuja mais significativa manifestação foi a exposição „Realism in Asian arts: voices behind the strokes“, realizada pelo Singapore art museum com o apoio de diferentes instituições nacionais e internacionais, entre elas do Instituto Goethe.



Esse tema não é apenas de relevância para os estudos da criação artística contemporânea e das tendências estéticas na Ásia, mas sim também para os estudos culturais em geral, auxiliando o pesquisador na percepção e na leitura adequada de sinais que indicam processos culturais.


Plásticas no espaço urbano


O observador constata, em Singapura, uma particular importância dada à plástica no espaço urbano. Além de estátuas representativas de personalidades da história colonial, herdadas do passado, conjuntos esculturais mais recentes marcam áreas de pedestres.


Essas plásticas diferem da estatuária mais antiga sob muitos aspectos. Elas não surgem como centro de perspectivações, em posições representativas em parques e à frente de edifícios monumentais, mas sim, em dimensões humanas, integradas ao mundo dos passantes.


Não representam vultos determinados da história, heróis ou homens de particulares méritos, mas sim pessoas do povo, em particular imigrantes chineses, representados nas suas atividades como trabalhadores e na sua interação com europeus, no passado e no presente.

Quase que pedagogicamente, são apresentados com as suas vestes características, com instrumentos de trabalho e veículos tradicionais, tais como carros de boi.


A representação realista das figuras, segundo modelos convencionais, indica que aqui a preocupação não foi sobretudo a de procura de novas soluções esculturais e novas propostas da plástica individual. A intenção foi antes cultural, a de garantir a memória e a presença do homem simples do povo, anônimo, de diferentes origens culturais e étnicas nos logradouros da metrópole.


Assim, as figuras surgem como elementos de grupos, fixadas em momentos de suas ações, intervindo na realidade, atirando-se na água do canal, subindo escadas, como se tivessem sido registradas em atos, como se a decorrência do tempo tivesse sido suspensa. Elas surgem, assim, antes como protagonistas de ações e interações tornadas estátuas, consistuindo antes encenações.


As intenções político-culturais podem ser aqui facilmente percebidas, uma vez que exprimem de forma evidente o intuito de valorização do homem do povo, em particular do chinês, e a do convívio das diferentes etnias e culturais na situação multicultural de Singapura.


A concepção teórico-cultural é também facilmente percebida, uma vez que as figuras são retratadas em trajes típicos, em ações características, com objetos tradicionais. Essa representação de folclore poderia ser analisada criticamente como sendo por demais placativa, até mesmo trivial. A diferença dessas expressões daquelas do realismo socialista é que aqui não há a monumentalização de heróis de uma luta de classes. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/122/Kiev_Mat_Rodina.html).


Procura de emblemática pós-colonial. O Merlion


A linguagem de imagens de Singapura não se limita àquela da cultura memorial de vultos da sua história relacionada com a presença britânica, nem à das encenações estatuárias de cunho realista da mobília urbana de épocas mais recentes.


Paralelamente ao caminho de Singapura à emancipação, constata-se o surgimento de desejos de criação de uma emblemática distinta daquela tão estreitamente vinculada à história britânica. O caminho que aqui se seguiu foi, como em várias outras regiões do mundo de história colonial, a procura de vínculos com um passado mais remoto.


Ponto de apoio para esse intento foi dado pela própria designação da cidade, explicada segundo a tradição por uma ocorrência que ter-se-ia dado no século XIV. Nessa época, quando a ilha se encontrava inserida no Império de Sri Vijaya, de Sumatra, ali teria estado um príncipe que, vendo um animal desconhecido, com aparência de leão, teria designado a região com o nome de Singa Pura, com o sentido de „cidade do leão“. Outras interpretações salientam a orientação marítima da cidade, a sua função de porto de mar de extraordinária importância, assim como a presença do mar na história e na cultura da região.


Quando a cidade de Singapura procurou, em 1964, desenvolver uma linguagem visual-simbólica com o objetivo de criação de logotipos e marcas para a imagem da cidade, sobretudo para fins de turismo, o artista Fraser Brunner produziu a imagem  do Merlion. A estátua encontra-se hoje na embocadura do rio Singapura. Um outro exemplar, de dimensões monumentais, tornou-se uma das atrações da ilha de Sentosa.


O Merlion não é um leão, mas uma figura que apresenta a parte superior do corpo de leão e a inferior de uma figura aquática. A sua própria denominação é resultado da conjunção de dois termos do inglês, um designativo da „virgem das águas“ (Mermaid) e do leão (Lion). Segundo as interpretações, essa figura representa a união, num mesmo corpo, da força e a coragem de um leão e da sua estreita união com o mar e a vida marítima.


Reflexões sobre a imagem com cabeça de leão e corpo de peixe


Essa imagem possui um complexo de sentidos que a faz altamente significativa para a procura de uma simbolização da unidade na diversidade de etnias, culturas e modos de ser da população de Singapura.


Em primeiro lugar, ela harmoniza concepções imagológicas do Ocidente e do Oriente. No Ocidente, desde as mais remotas eras, a figura feminina que apresenta a parte inferior do corpo com aparência de peixe é conhecida, constatada e estudada no patrimônio de expressões culturais de diversos países. Levada pelos navegadores a várias partes do mundo - inclusive para o Brasil - é apta a ser analisada sob diversas perspectivas.


A sua permanência através dos séculos apenas pode ser explicada através de mecanismos que possibilitaram a sua transformação de significados no início da era cristã. Para os portugueses e seus descendentes em Singapura, essa imagem aproxima-se àquela da sereia, tão conhecida na tradição portuguesa, sobretudo em contextos vinculados ao mar e à navegação.


No Oriente, a imagem foi também conhecida desde remotas eras, constatada sobretudo em meios náuticos chineses e em regiões de imigração chinesa. Também aqui a imagem da mãe d‘água correspondeu a concepções básicas de sistemas religiosos de diferentes proveniênicas, podendo neles ser integrada e venerada.


Com essa imagem, Singapura aproxima-se, quanto à simbologia, de vários outras localidades do mundo chinês, sobretudo da imigração. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Mazu-em-Singapura.html)


Essa imagem vem de encontro, assim, a concepções tradicionais de significativa parte de sua população, a chinesa e a de outras partes do Extremo Oriente, marcada pela experiência histórica da travessia marítima. Ela não apenas corresponde à cultura da população de origem na imigração do século XIX, mas evoca um passado longínquo. A região de Singapura já teria sido conhecida dos navegantes chineses séculos antes da era cristã.


Essa imagem vem de encontro, também, a concepções familiarizadas dos indianos e seus descendentes em Singapura. Um de seus templos, o dedicado a Krishna, apresenta, na sua fachada, imagens com a parte inferior do corpo na forma de animal aquático, com escamas, ao lado de imagens com corpo com casco de tartaruga e outros com cabeça de animais, ou seja, formas familiarizadas a fiéis e a todos os passantes.


Também com relação à parte superior leonina da figura pode-se encontrar elos com a cultura de imagens do Ocidente e do Oriente. Mais superficialmente, o elo com a Grã-Bretanha é, aqui, particularmente evidente.


Representação da dinâmica de processos transformatórios


A imagem da sereia no Ocidente, constatável já na antiga mitologia, pôde atravessar os séculos através de sua reinterpretação cristã, mantendo indeterminações na percepção de sentidos pelo grau de abstração que exige a sua elucidação.


Também a imagem correspondente na tradição chinesa levanta questões de sentidos que apenas podem ser tratadas nas suas inserções nos diferentes edifícios de concepções.


Sem entrar-se aqui em conjecturas arqueológico-culturais de contatos entre povos que possam permitir elucidar a ocorrência de imagens similares em diferentes partes do mundo, deve-se constatar, no emblema de Singapura, uma intercomunicabilidade de imagens passíveis de serem lidas sob diferentes perspectivas.


Essa imagem, tanto no Ocidente como no Oriente, não deve ser entendida como uma justaposição híbrida de duas figuras, ou seja, uma imagem metade peixe, metade mulher, ou, no caso do Merlion, metade peixe, metade leão.


A imagem simboliza um processo transformatório, uma metamorfose, resultados de ações imateriais no material.


Com o seu emblema, baseado no seu nome, Singapura dirige a atenção a fundamentos de um edifício de concepções da Filosofia da Natureza como base de edifícios de visões do mundo e do homem em diferentes contextos e tradições religiosas.


Diferentemente da placatividade de representações realistas do mobiliário urbano, o Merlion surge como ponto de partida para considerações mais sensíveis de processos de transformação de uma sociedade marcada internamente pela interação de diferentes culturas e, ao mesmo tempo, inserida em contextos globalizadores.


Diferenças, problemas e consequências


O Merlion exige um determinado procedimento de leitura de sentidos da linguagem visual e um aprofundamento de estudos culturais, sobretudo daqueles de intercomunicação religiosa.


A criação de um novo emblema não deixa de levantar questões não previstas, uma vez que a imagem pode ser entendida de forma diversa daquela intencionada pelos seus idealizadores ou pelas instâncias oficiais.


Pelos seguidores  de diferentes religiões e para todos aqueles familiarizados com linguagens visuais de diferentes tradições religiosas, ela não será certamente lida segundo as interpretações superficiais que se costuma fazer, por exemplo, para explicar côres de uma bandeira nacional.


Não sendo lida como mera justaposição ou como união da força e coragem de um leão com as qualidades da água, ou da Inglaterra com o mundo malaio, mas sim como sinal de um processo transformatório, ou seja, como o vir-a-ser do leão a partir das águas, ou a transformação das águas em leão, possui uma ambivalência dependente da sua conotação masculina ou feminina:

pode ser vista ou como a origem do leão como filho de mãe de natureza aquática ou como da transformação da mãe ao gerar o filho.


A imagem portanto, não é mais simplesmente o da mãe d‘ água conhecida de diferentes contextos, mas indica um momento de um processo transformatório, posterior a uma ação que o desencadeia na mãe.


A escolha dessa imagem tem consequências teórico-culturais e filosóficas mais amplas. Ela se relaciona com uma visão do mundo e do homem que parte de uma leitura da realidade dirigida a um sentido oculto, imaterial, a ser desvendado por detrás das aparências. Trata-se, assim, de uma concepção de orientação metafísica, onde considerações ontológicas desempenham papel fundamental.


A aproximação a questões estéticas relacionadas com a convivência e harmonização de uma sociedade multicultural e plureligiosa, como a de Singapura, segundo intentos de uma unidade na diversidade, não é aquela de correntes do Realismo manifestadas na arte visual e nas encenações escultóricas dos logradouros públicos da cidade.


A discussão, assim, é transferida a uma esfera mais abstrata da discussão teórica e filosófica.


Ao mesmo tempo, porém, essa aproximação a questões estéticas e à discussão teórica e filosófica contraria posições do Moderno que marcaram fundamentalmente o desenvolvimento urbano e arquitetônico do seculo XX da metrópole.



Compreende-se, assim, o significado que assume o Pós-Moderno em situações multiculturais e que podem levar mesmo a expressões marcadas por um ecleticismo e neo-historicismo observável em novos edifícios monumentais de Singapura e que causam perplexidade no observador.



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Indicação bibliográfica para citações e referências:


Bispo, A.A. "Estetica e Direitos Humanos, Realismo nas artes asiáticas e Simbólica
O Merlion de Singapura e a imagem da sereia na Ásia, na Europa e no Brasil
". Revista Brasil-Europa 127/5 (2010:5). www.revista.brasil-europa.eu/127/Realismo-asiatico-o-Merlion.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.





 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 127/5 (2010:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2638





Estética e Direitos Humanos
Realismo nas artes asiáticas e Simbólica
O
Merlion de Singapura e a imagem da sereia na Ásia, na Europa e no Brasil


Ciclo „Direitos Humanos, Estudos Culturais e História Diplomático-Cultural“ da A.B.E.
Preparatórias à passagem dos 500 anos da tomada de Goa e de Málaca pelos portugueses

Singapore Art Museum

25 anos de fundação alemã do Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.

 
























  1. Singapura
    Fotos A.A.Bispo 2010
    ©Arquivo A.B.E.

 

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